quinta-feira, 16 de abril de 2015

Sobre o caso Verônica Bolina...

O que explica o silêncio diante da tortura sofrida pela travesti dentro da cadeia?

Ontem, via Facebook, vi várias postagens que traziam as fotos de uma travesti com o rosto completamente desfigurado. As imagens pipocaram desde o último fim de semana e, de tão chocantes, acabaram por me afastar do fato aterrador que elas ilustravam. Mas ontem, soube de algo que acabou me fazendo correr atrás da história: eu conheci a travesti que aparecia deformada naquelas fotos. Sim, eu conheci Verônica Bolina! Nunca conversamos, é verdade, mas Verônica e eu malhamos na mesma academia por um bom tempo. Voltei às fotos. E fiquei completamente chocado...
Pra quem não sabe, Verônica, uma travesti, presa e sob tutela do Estado, foi aparentemente espancada por policiais depois de uma violenta (suposta) briga com um agente penitenciário. Mais que isso: teve seu cabelo raspado, foi fotografada seminua, desfigurada e teve tais imagens divulgadas na web. Uma vez denunciada a barbárie oficial, órgãos de imprensa passaram a reproduzir a notícia sem levar em conta a versão da travesti, quase que naturalizando o absurdo da situação.  
Não me interessam os motivos que levaram Verônica para a prisão. Também não me interessa que ela tenha se envolvido numa briga. Para os dois casos, a lei: ela deve ser investigada e punida com o máximo rigor previsto na nossa legislação. Nem mais, nem menos. Mas não se pode tolerar, aceitar ou compactuar com qualquer forma de violência e opressão praticada pelo aparelho oficial. O Estado não pode tratar cidadãos e cidadãs como se estivesse acima da lei! Ao agir como agiram, seja sob qual pretexto o tenham feito, os homens da lei deram as costas para as regras acordadas pela sociedade e pactuadas na constituição e impuseram a todos nós uma lei outra; paralela, oficiosa. Igualaram-se - ou superaram - o que há de mais marginal em nosso país.
A repercussão do caso na mídia nos primeiros dias também chama atenção. Primeiro, pela já exposta simpatia inicial ao discurso oficial, desprezando qualquer possibilidade de análise crítica dos fatos. Segundo, pela exposição de Verônica, ferida e sem roupas, como uma espécie de troféu, em textos que desconsideravam a identidade de gênero de Verônica, tratando-a com pronomes masculinos. Uma prática que parece legitimar o tratamento covarde e desumano recebido pela travesti. É como se fosse o Estado a dizer: "É assim que tratamos travestis negras", com a mídia a lhe dar tapinhas nas costas. E terceiro, por expor o assombroso silêncio que paira quando o assunto é a violência contra travestis e transexuais no Brasil.
Negra e travesti, Verônica Bolina é uma representante da parcela da população mais vulnerável à violência e aos crimes de ódio. Segundo o deputado Jean Wyllys, em texto postado no Facebook, "pesquisa sobre os direitos das trans negras no Brasil, publicada pela ONG internacional Global Rights, corrobora a realidade dessa população, impactada desproporcionalmente por diversas formas de violência física e sexual. Os dados da pesquisa foram apresentados durante uma audiência temática sobre os direitos das pessoas trans negras no Brasil diante na Comissão Inter-Americana de Direitos Humanos”.
O tratamento dado ao caso ajuda e entender os resultados da pesquisa. Exposta, humilhada e torturada, aos olhos da sociedade, Verônica não parece ninguém. É mais uma travesti negra a confirmar seu destino trágico. Como num filme que se repete e para o qual não se deseja imaginar um novo fim. 
Acontece que é muito perigoso escolher quem "merece" ser tratado dentro dos limites das leis, sem lembrar que a legislação é para todos - assim como também o são os direitos. Afinal, quando os direitos de um são violados, todos perdemos. E, nesse caso, o silêncio, a legitimação de uma prática policial criminosa, o deboche e a relativização demonstram que, pior do que deixarmos que a violação aconteça, nós ainda somos capazes de aprová-la e aplaudi-la. 
Triste da sociedade que acha aceitável que cidadãos recebam tratamento desigual do Estado. Primeira e segunda classes até podem funcionar nos aviões mas, na sociedade, são apenas a tradução da pouca civilidade e do descompromisso com o coletivo, traços de uma nação que parece insistir para se perpetuar excludente. 

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