sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

A bela história e as lições de Seu Perdiz...

Cheguei ao lugar da gravação certo de que aquela seria uma das grandes histórias que poderia contar. Era uma rua residencial, tranquila, com grama e árvores - como muitas das ruas brasilienses. Quando a van parou, desci e avistei nossa locação: a Oficina Perdiz. Uma oficina mecânica como outra qualquer, mas com um detalhe que faz dela única: ali, entre soldas, máquinas e muito ferro retorcido; ali, no meio de uma das mais representativas imagens do que é o caos urbano; bem ali, naquela oficina, há um teatro. Fato evidenciado pela placa do estabelecimento que, em vez de qualquer alusão ao mundo da mecânica, traz, sim, as tradicionais máscaras que identificam a arte dramática.
Entramos, eu e a equipe do Salto, e fomos carinhosamente recebidos pelo Marcos, produtor do teatro. Não havia luz e o clima de oficina, num primeiro instante, me fez duvidar de que teríamos a possibilidade de registrar o que pretendíamos naquela noite: o teatro em funcionamento.
Mas não demorou até que o seu Perdiz viesse até nós. Simpático, estendeu a mão e apertou a minha com uma força que nem de longe deixa supor os seus 77 anos. Camisa xadrez, jeito bonachão, ganha a afeição de toda a equipe em menos de dois minutos de prosa. Bruno, o nosso produtor, também recebe um aperto de mão daqueles! E pergunta ao dono do espaço: "Como vai, seu Perdiz?". E ele responde: "Não vou não! Tô sempre por aqui!".
Descarregamos nossos equipamentos e começamos a preparar o set para a gravação. A riqueza do cenário oferece inúmeras possibilidades. Mas me concentro em seu Perdiz. E, antes de começarmos a gravar, ele me conta sua história. A semente daquele teatro no fundo da oficina foi plantada há 35 anos, depois que um sobrinho, estudante de Artes Cênicas, pediu ao mecânico um espaço para ensaiar. Encantado por arte, Perdiz viu e acompanhou o crescimento do lugar nos anos seguintes até que, em 1989, com a instalação de arquibancadas, o Teatro Oficina Perdiz passou a funcionar plenamente. Durante a década de 90, o palco ocupou um espaço importante na cena teatral brasiliense e abrigou longas temporadas de espetáculos de grupos teatrais do Distrito Federal.
Seu Perdiz me contou que nunca recebeu dinheiro de bilheteria. E parece sincero ao dizer que não tinha interesse na renda das peças. Oferecendo pedaços de aipim frito, lembra dos espetáculos memoráveis que passaram naquele palco. E tenta se mostrar forte diante do destino da oficina...
Sentamos na arquibancada e começamos a gravar a entrevista. É um papo alegre, como é o seu Perdiz. Homem de uma alegria que contrasta com um triste desfecho que já se impõe sobre aquele lugar. Vítima da especulação imobiliária na região, Perdiz teve questionada a propriedade daquele pedaço de chão depois de viver ali por mais de quatro décadas. No meio de sua oficina já há colunas de madeira que escoram as obras de um empreendimento imobiliário que, em breve, vai ocupar o terreno do teatro e da casa construídos pelo velho mecânico. A promessa é que uma nova casa, em outra localidade, seja entregue a Perdiz. Já para o teatro, por enquanto, o destino ainda é incerto. A única certeza é a de que, ali naquele fundo de oficina, ele não vai continuar.
Enquanto presto atenção às suas respostas, em vários momentos eu percebo os olhos de Perdiz marejados. É um homem apaixonado por aquele teatro, pela cultura e contaminado pela pulsação dos jovens atores que enchem de vida aquele espaço. Termino a entrevista segurando a emoção enquanto ouço aquele mestre da vida me falar dos seus sonhos para o futuro. Neles, está o teatro. O que faz todo o sentido, porque o teatro está dentro dele.
Cai a noite, registramos belas sequências de Diário do Maldito, encenadas pelo pessoal do Teatro do Concreto. Perdiz acompanha tudo, sempre empolgado. Indagado sobre o placar do jogo do Flamengo, ele - também rubro-negro como eu e Bastos, o cinegrafista - liga uma TV baixinho e volta com sorriso no rosto pra dizer que estamos vencendo por um a zero, gol de Léo Moura. Iniciamos uma longa série de entrevistas e ele vê uma a uma, brincando com o pessoal da companhia de teatro, abraçando, sendo abraçado, dando e recebendo carinho de todos os lados...
Chega o fim da nossa jornada, já passa das 11 da noite. Eu me aproximo do seu Perdiz, que está novamente sentado sobre a arquibancada, estendo minha mão e agradeço. Não disse tudo isso, mas aquele obrigado era muito amplo. Pela afetividade, pelo carinho, pela entrevista, pela lição de continuar tendo fé mesmo nas adversidades e por demonstrar, de forma tão contundente, o quão importante é manter viva a nossa capacidade de sonhar. Perdiz aperta novamente minha mão com toda a força, agradece à equipe - como se nós lhe tivéssemos feito algum favor - olha em volta e diz: "Agora isso tudo vai morrer". Faz uma pausa e completa: "E eu vou morrer junto...".
Pode parecer bobo, mas saí de lá naquela noite torcendo para que Perdiz e seu teatro não morram jamais...

A reportagem sobre o Teatro Oficina Perdiz vai ar ar em maio, na série Teatro e Educação, do Salto para o Futuro, na TV Escola.

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