sábado, 1 de fevereiro de 2014

Sobre aquele beijo de Niko e Félix...

Sinal dos tempos: dois homens se beijaram em horário nobre pela primeira vez no Brasil ontem
Walcyr Carrasco é um grande autor. Em seu currículo estão sucessos como "Xica da Silva", "O Cravo e a Rosa", "Chocolate com Pimenta", "Alma Gêmea" e "Caras e Bocas". Êxitos que o credenciaram a entrar no rol seleto dos autores que escrevem para o principal horário de novelas da Globo. A estreia foi morna. Não fosse pelo absoluto acerto na construção de Félix e pelo estupendo desempenho de Mateus Solano na defesa do personagem, talvez a novela tivesse se perdido num mar de tramas um tanto quanto frágeis. Mateus Solano levou a novela e deixou na história da TV brasileira um grande tipo, uma criação que será lembrada por muito tempo.
Com 221 episódios, depois de esticada em quase dois meses - o usual é que as novelas das nove tenham 180 capítulos - "Amor à Vida" conseguiu o improvável: promover a conversão de um vilão em protagonista! Detestável ao longo de 80, 85% da trama, Félix se arrependeu dos seus pecados e se tornou ainda mais querido pelo público. Ganhou um amor e, outrora conservadora, a audiência comprou a ideia e passou a torcer pelo happy end do ex-vilão. A pergunta que pairava no ar, no entanto, era: haverá beijo gay?
Horas antes da exibição do último capítulo de "Amor à Vida", ontem, críticos de televisão já especulavam sobre a exibição da cena envolvendo os personagens de Mateus Solano e Thiago Fragoso. Mais que isso: alguns apontavam que a direção da TV Globo estava decidida a romper esse paradigma, derrubando o tabu que ganhou força desde 2005, quando uma cena de beijo da novela "América", entre os personagens de Bruno Gagliasso e Erom Cordeiro foi surprimida por ordens dos executivos do canal horas antes da transmissão do episódio, frustrando a autora, Gloria Perez, e os demais envolvidos na produção.
Ontem, o Brasil viu um beijo gay em horário nobre. De casa, ouvi gritos de uma torcida anônima, da qual sequer poderia imaginar a existência. Postei isso no twitter e recebi mensagens relatando episódios idênticos em várias partes do Rio, do Brasil. Por telefone, minha mãe contou que foi assim também perto da casa dela. Vejam vocês! Em tempos de tanto preconceito, em tempos cheios de crimes de ódio, há um Brasil que torce pelo amor! E que não se importa se ele une pessoas do mesmo sexo ou não.
Mais do que um desfecho coerente para uma história bem construída entre dois personagens carismáticos, o beijo tem um relevante papel social: ele naturaliza a expressão de uma outra forma de amor, de uma outra possibilidade de ser, de existir e de amar. Há um Brasil que já sabia de tudo isso. Há um Brasil que fingia não ver isso. E há um Brasil que quer negar isso. Ontem, simultaneamente, esses três Brasis viram isso. Hoje, crianças não amanheceram gays. Maridos não largaram suas esposas para ficar com outros homens. Não houve registros de episódios de depravação em locais públicos. Houve, sim, muita gente enaltecendo a beleza do amor, do respeito e da aceitação. Gente impactada pelo beijo sim, mas também - e talvez ainda mais fortemente, pela linda cena final de "Amor à Vida", quando César, o pai homofóbico, aceita e declara seu amor pelo filho gay, fazendo Félix chorar copiosamente. Uma cena antológica, das mais delicadas que a teledramaturgia brasileira já conseguiu produzir. Aliás, vale dizer que quando Walcyr Carrasco apresentou à direção da TV Globo a sinopse de "Amor à Vida" a trama se chamava "Em nome do Pai". Ontem, terminada a exibição do desfecho da novela, percebi que o título original fazia muito mais sentido que o definido para substituí-lo. 
Depois da exibição da cena entre Félix e Niko a Central Globo de Comunicação divulgou uma nota afirmando que a cena acompanha o momento histórico que vivemos. Taí uma verdade: com atraso, sobretudo em relação ao que já vemos nos canais fechados, o beijo de ontem retrata outros tempos, de maior entendimento sobre a diversidade. Um entendimento que está relacionado aos avanços das políticas de Estado, às recentes decisões judiciais e à luta árdua dos militantes sociais, abnegados defensores dos direitos humanos e do respeito à pluralidade. 
O Brasil de 2014 é muito, muito melhor que o de 2005! E quero crer que o Brasil do futuro, daqui a 10, 20, 30 anos, será infinitamente superior ao país que temos hoje. 

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